Muitos estudantes que vão fazer o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) em novembro já planejam citar a Constituição Federal, Drummond, Bauman e outros “repertórios coringas” em suas redações, seja qual for o tema proposto.
Segundo professores ouvidos pelo g1, essa estratégia — que tem se tornado cada vez mais comum entre os jovens que já estão familiarizados com o tipo de texto e com as competências do exame — pode ser um tiro no pé para quem não sabe aplicar devidamente os repertórios socioculturais.
De acordo com a cartilha da redação do Enem, divulgada anualmente pelo Inep, é considerado repertório sociocultural “uma informação, um fato, uma citação ou uma experiência vivida que, de alguma forma, contribui como argumento para a discussão proposta”.
Esse é um dos elementos que devem contar obrigatoriamente no texto e que compõe a competência 2, que vale 200 dos mil pontos máximos da redação. (Entenda mais abaixo). Mas, se a referência for feita da maneira errada, pode custar ao aluno pontos de outras competências.
Abaixo, entenda se e como referências como essa devem ser feitas, e como evitar a perda de pontos em outros elementos do texto.
Como a redação é avaliada
• Formato
A redação do Enem deve ser uma dissertação argumentativa com proposta de intervenção. O texto deve ser organizado em parágrafos que discorram, por meio de argumentos e referências externas, sobre o problema apresentado no tema. Além disso, o autor precisa apresentar no texto uma sugestão de como solucionar o problema.
• Competências
Ao todo, a redação vale 1000 pontos. Estes pontos podem ser alcançados pelo candidato que cumpre adequadamente com as 5 competências obrigatórias. São elas:
1. Demonstrar domínio da modalidade escrita formal da língua portuguesa.
2. Compreender a proposta de redação e aplicar conceitos das várias áreas de conhecimento para desenvolver o tema, dentro dos limites estruturais do texto dissertativo-argumentativo em prosa.
3. Selecionar, relacionar, organizar e interpretar informações, fatos, opiniões e argumentos em defesa de um ponto de vista.
4. Demonstrar conhecimento dos mecanismos linguísticos necessários para a construção da argumentação.
5. Elaborar proposta de intervenção para o problema abordado, respeitando os direitos humanos.
Essas competências têm seus próprios elementos obrigatórios e valem 200 pontos cada. O candidato que respeitar todos estes elementos alcança a tão sonhada nota 1000.
• Repertório sociocultural
Um dos elementos que pode ajudar ou impedir o aluno de conseguir 200 pontos na competência 2 é o uso de repertórios socioculturais na argumentação do texto.
O candidato pode citar livros, filmes, músicas, notícias ou outros elementos que tenham relação com o tema.
Para fins de validação da nota, é preciso colocar no texto apenas uma referência, mas o autor pode usar mais de uma se desejar — desde que os elementos contribuam para o desenvolvimento ou defesa da ideia apresentada no texto.
Mesmo que a cartilha da redação apresente o repertório cultural de uma maneira simples, muitos candidatos acreditam que referências mais formais podem pesar na nota.
Mateus Leme, professor de redação da Oficina do Estudante, avalia que, atualmente, não é bem assim, mas explica que isso já ocorreu no passado.
Muitos anos atrás, o Enem dava maior valor para repertórios de uma cultura mais erudita, como filósofos e sociólogos, e não valorizava tanto elementos da cultura popular. Mas, nos últimos anos, os elementos de cultura popular são tão valorizados quanto autores renomados da filosofia, da sociologia ou da história.— Mateus Leme, professor de redação.
Por isso, o professor diz que não faz diferença na nota se o aluno cita um influenciador social ou um acontecimento midiático recente, em vez de referenciar historiadores, por exemplo. Isso, claro, desde que a referência esteja dentro do tema proposto.
Referências "coringas"
Ainda assim, muitos alunos se preparam para o Enem com base em repertórios mais formais e até optam por estudar referências mais “versáteis”.
Segundo professores, algumas das referências que têm aparecido repetidamente nas redações são:
• Constituição Federal de 1988
• Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU
• Zygmunt Bauman (filósofo e sociólogo)
• Carlos Drummond de Andrade (poeta e cronista)
• Machado de Assis (escritor)
• Platão (filósofo e matemático)
• Jessé Souza (escritor e sociólogo)
“Não é que o uso de referências como estas seja incorreto. O candidato pode e deve usar qualquer repertório que consiga amarrar com a argumentação do tema.
O que não deve acontecer é ser uma referência forçada ou uma citação genérica”, avalia Mateus Leme.
Definir um autor ou uma referência previamente para utilizar na redação sem saber qual será o tema proposto pode prejudicar o candidato.
Não é uma boa estratégia se definir uma referência obrigatória. Se o repertório não tiver relação com algum aspecto do tema, não vai contar para a nota. Então, é melhor o aluno se valer de conhecimentos de outras disciplinas, o que também é válido, e valorizar outros saberes que ele já tem.— Felipe Leal, professor de redação do Curso Anglo.
Com isso, mesmo que o candidato pontue no aspecto do repertório, na competência 2, ele pode acabar perdendo pontos na argumentação, avaliada da competência 3.
"A citação ou referência precisa dialogar com o texto, reforçar alguma ideia do próprio autor, da problemática do tema, ou mesmo sobre a proposta de intervenção.
Portanto, decorar um repertório que pode não ser relacionável a nada disso numa eventual redação não é um risco válido", completa Felipe Leal.
E a Constituição?
O repertório cultural mais comum nas redações do Enem é a Constituição Federal, segundo os professores.
Isso acontece porque o texto constitucional brasileiro é muito amplo, o que lhe confere uma versatilidade muito apreciada pelos candidatos do exame, e o torna facilmente relacionável à diversas propostas de texto.
Os temas da redação são sempre relacionados à direito. Por isso, é possível pensar em citações [da Constituição] que quase sempre conseguem ser feitas, e é muito difícil que haja um tema do Enem em que a Constituição não possa entrar. O mesmo cuidado deve ser tomado quando a Carta Magna for usada no texto.
"Só citar a Constituição nominalmente não é o suficiente para reforçar uma argumentação. Se o objetivo do aluno for usá-la no texto, que seja algo mais específico e detalhado. Ou, em último caso, opte por uma referência mais conhecida", aconselha Mateus Leme.
Os professores explicam que o principal é não entender a redação como algo pré-delimitado.
"O tema é específico e o tamanho do texto é limitado, mas aquele ainda é um espaço para o aluno mostrar sua originalidade e a legitimidade de suas ideias. Não vale a pena arriscar justamente essa oportunidade para dar vez a um repertório específico que, na maioria das vezes, o aluno só decorou", finaliza Mateus Leme, da Oficina do Estudante.— Felipe Leal, professor de redação.
Fonte: G1